quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A DOUTRINA DA GRAÇA COMUM


Uma reflexão sobre a Doutrina da Graça Comum e o debate entre o profano e o sagrado

Robson T. Fernandes

Muitos debates teológicos têm surgido ao longo dos anos e da história da igreja. Talvez isso ocorra devido às nossa limitações humanas face a tentativa de se entender o Deus ilimitado, ou quem sabe pela nossa indisposição e descaso em aprofundar os estudos da Escritura, talvez – ainda – devido aos nossos pressupostos equivocados que influenciam na interpretação bíblica, ou ainda pela nossa total incapacidade e falta de dependência do Espírito Santo para nos guiar no estudo do Texto Sagrado. Quem sabe, talvez, pela soma de todos esses fatores. De uma forma ou de outra, para piorar a situação, temo severamente em pensar que parece que nós, hoje, somos a geração que menos conhece a Bíblia. Me vem uma profunda tristeza ao pensar que talvez nós sejamos a geração que tem preparado os futuros pastores da pior forma possível, e com isso a igreja – Corpo de Cristo – tem sofrido por falta de instrução e orientação adequada.

Temos vivenciado uma falsa religiosidade, abandono dos princípios bíblicos mais fundamentais e substituição dos valores cristãos por valores seculares. Diante de tudo isso, surge a questão sobre o envolvimento do cristão com esse mundo. Até que ponto o cristão pode estar no mundo, desfrutando daquilo que Deus criou sem ser influenciado pela natureza caída do sistema secular?

Na verdade, antes de responder a essa pergunta, uma outra pergunta mais importante deve ser feita: Como identificar, no mundo, aquilo que Deus fez e o que Deus não fez e que é fruto do pecado?

Penso que esse tem sido um dos grandes problemas no meio evangélico, pois em nome de um radicalismo sem bases bíblicas, de um sectarismo e moralismo de uma cultura religiosa, que em muitos aspectos se assemelha as mesmas práticas do farisaísmo legalista, têm-se alimentado práticas que a Bíblia reprova, e por outro lado têm-se proibido práticas que a Bíblia não reprova. Nesses casos, temos igrejas, pastores e membros que são escravos e que escravizam, criando novas normas e regras de conduta, alicerçado sua comunidade em puros hábitos culturais, misturando doutrina bíblica com práticas específicas de determinadas culturas. Com isso, temos visto uma igreja descaracterizada que muitas vezes distorce, aliena e ignora as belezas de sua própria cultura e absorve aspectos de outras culturas, pensando que está obedecendo ao mandamento bíblico.

Por essa razão, vemos a necessidade de analisarmos a doutrina da Graça Comum.

Para muitos, falar de Graça Comum é simplesmente estudar sobre a permissão ou proibição de se ouvir músicas seculares. Na verdade, o estudo da Graça Comum vai muito além disso. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso entender o significado desse termo teológico. Russel N. Champlin (2006, p.958) define Graça Comum da seguinte forma:
GRAÇA COMUM. Essa é uma expressão usada pela teologia reformada. Ela afirma que há uma graça divina que beneficia a todos os homens, embora não leve todos à salvação da alma, e nem envolva o intuito divino de salvar a todos os homens. Em contraposição, temos a graça especial, que é a operação divina em favor dos eleitos. A graça comum nos permite reconhecer todo o bem que existe no homem e na natureza, em sentido universal, sem sacrificar a singularidade da religião cristã, sobretudo em sua doutrina da eleição.
Walter Elwell (1992, p.216,217) explica a Graça Comum da seguinte maneira:
A graça comum é assim chamada porque toda a humanidade a recebe em comum. Seus benefícios são experimentados pela totalidade da raça humana, sem discriminação entre uma pessoa e outra [...]
Outro aspecto da graça comum fica evidente no governo ou controle divino da sociedade humana. [...] O fato de que certa medida de harmonia doméstica, política e internacional é desfrutada pela raça humana em geral deve-se à soberana bondade de Deus. Paulo ensina até mesmo que o governo civil com as suas autoridades é ordenado por Deus e que resistir a eles é resistir a Deus. Chega a chamar os governantes e magistrados seculares de ministros de Deus, visto que seu dever apropriado é a manutenção da ordem e da decência na sociedade. Visto que têm o poder da espada para o castigo dos malfeitores, visando os interesses da justiça e da paz, sua autoridade lhes foi dada por Deus. E, de modo significativo, o Estado do qual Paulo se orgulhava ser cidadão era o Estado pagão e, às vezes, perseguidor, o Império Romano, pelas mãos de cujos governantes ele acabaria sendo executado (veja Rm 13.1ss.).
Além disso, é devido à graça comum que o homem retém dentro de si uma consciência da diferença entre o certo e o errado, entre a verdade e a falsidade, entre a justiça e a injustiça [...] O homem, em resumo, tem uma consciência e é dotado com a dignidade de existir como um ser humano responsável [...] A consciência é o enfoque dentro de cada pessoa, como um ser formado à imagem de Deus, não somente de auto-respeito e respeito pelos outros, como também de respeito por Deus.
À graça comum, portanto, devemos atribuir com gratidão o cuidado continuo que Deus tem com a Sua criação, à medida que Ele atende as necessidades das Suas criaturas, refreia a sociedade humana de tornar-se totalmente intolerável e ingovernável e possibilita que a humanidade, embora caída, viva em conjunto, em geral de modo ordeiro e cooperador, demonstre mútua tolerância e cultive conjuntamente as atividades científicas, culturais e econômicas da civilização.
Dessa forma, Elwell esclarece que a Graça Comum é a capacidade que Deus deu ao ser humano para que este saiba viver em grupo de forma ordenada e seja capaz de produzir algo proveitoso e construtivo. Portanto, reconhecer a Graça Comum é reconhecer a mão de Deus na criação e através da criação, muito embora esta Graça Comum não seja suficiente para conduzir o espírito do ser humano à salvação.

Nesse sentido, começamos a compreender que Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5:45b).

Por outro lado, ignorar essa verdade bíblica é o mesmo que não usufruir daquilo que Deus capacitou o homem a produzir. É importante compreender que pessoas e instituições que não conhecem a verdade da Palavra de Deus, ainda assim, podem produzir boas coisas para a sociedade. Podemos constatar alguns desses exemplos na história:

Henry Ford, criador da marca de automóveis Ford, era anti-semita[1] e adepto do nazismo, porém contribuiu com a produção de uma das principais marcas de automóveis que beneficia inclusive os cristãos.

A GM, General Motors, forneceu caminhões para que Hitler travasse a Blitzkrieg (guerra relâmpago) contra a Europa. Porém, da mesma forma, fornece automóveis que beneficia inclusive os cristãos na atualidade.

A Fundação Rockefeller, forneceu os recursos necessários para que o nazismo, na Segunda Guerra Mundial, realizasse os experimentos médicos de eugenia[2] que visava cometer crimes contra seres humanos indefesos. Porém, muito embora haja uma atual discussão sobre as verdadeiras intenções desta instituição, sabe-se que tem atuado na reparação de sistemas de saúde fracos e desatualizados e minimização das dificuldades de necessidade básicas, gerando benefícios para a população, por exemplo.

A IBM, International Business Machines, ofereceu-se para organizar e sistematizar qualquer solução que o Reich de Hitler desejasse, o que incluiu a “solução” para o problema dos judeus. Porém, sendo a precursora do computador contemporâneo, forneceu condições para que cristãos desfrutassem dos atuais computadores, incluindo a mim que escrevo este artigo.

Sem dúvida alguma, pessoas que não são religiosas, no sentido bíblico do termo, podem produzir boas coisas para a sociedade. Por exemplo: O brasileiro Vital Brazil, criou o soro antiofídico a mais de 100 anos. Seu soro, até hoje, é a única forma capaz de neutralizar a ação do veneno de animais peçonhentos; O brasileiro Osvaldo Cruz, que foi o pioneiro a estudar as doenças tropicais e a desenvolver a medicina experimental em nosso país; O brasileiro Carlos Chagas, único cientista no mundo a descrever em todos os aspectos a doença que recebe seu nome; O brasileiro Santos Dumont, inventou o avião moderno, o dirigível Nº 6, e o relógio de pulso; O árabe e muçulmano Al-Khwarizmi, desenvolveu a álgebra, fez um tratado de geometria, tábuas astronômicas e vários trabalhos de geografia; O ateu americano Linus Pauling, bioquímico, iniciou as pesquisas que culminaram na descoberta do DNA; A atéia polonesa Marie Curie, foi a primeira pessoa a receber duas vezes o prêmio Nobel. A primeira vez o Nobel de Física, em 1903, pelas descobertas no campo da radioatividade, e a segunda vez o Nobel de Química, em 1911, pela descoberta dos elementos rádio e polônio; O ateu americano Mark Zuckerberg, muito embora seja de origem judia, junto com Jefter Ruthes, criou o Facebook, a maior rede social do mundo.

Todas essas descobertas e invenções beneficiam a comunidade em geral, seja cristã ou não, e toda elas são o reflexo da mão de Deus cuidando e guiando toda a Sua criação.

Porém, a despeito de tudo isso, muitos cristãos têm ignorado essa verdade e produzido uma espécie de cultura paralela, enquanto outros, em igual desequilíbrio, têm se amoldado completamente ao mundo, fazendo com que a Igreja se pareça com uma versão cristianizada do secular. Com isso, temos duas posições desequilibradas e antagônicas, que ora reprovam tudo o que venha de uma fonte não cristã e ora aceitam toda e qualquer coisa em nome de um pensamento politicamente correto e uma distorção de valores.

Nesse ponto surge a pergunta: Onde e como encontrar o equilíbrio?

Nancy Pearcey (2006, p.37,38.) nos aponta a direção dessa resposta:
[...] Na cultura popular, os crentes construíram uma cultura paralela de artistas e apresentadores; mesmo assim, como lamenta Charlie Peacock, poucos “pensam cristãmente” em arte e estética.
“Pensar cristãmente” significa compreender que o cristianismo tem a verdade sobre o todo da realidade, uma perspectiva para interpretar todos os assuntos da vida. O livro de Gênesis fala que Deus criou todo o universo com sua Palavra - o que João 1.1 chama de o Logos. A palavra grega significa não só “Palavra” ou “Verbo”, mas também “razão” ou “racionalidade”, e os antigos estóicos a usavam com o sentido de estrutura racional do universo. Assim, a estrutura subjacente de todo o universo espelha a mente do Criador. Não há dicotomia fato/valor na narrativa bíblica. Nada tem identidade autônoma ou independente, separado da vontade do Criador. Em consequência disso, toda a criação deve ser interpretada levando em conta sua relação com Deus. Em qualquer área de estudo, estamos descobrindo leis ou ordenações da criação pelas quais o Criador estruturou o mundo.
Como diz a Bíblia, o universo fala de Deus – “os céus manifestam a glória de Deus” (Sl 19.1) –, porque seu caráter está refletido nas coisas que Ele fez. Dizemos, às vezes, que é “revelação geral”, porque fala em todo momento com todo o mundo, em oposição à “revelação especial” dada na Bíblia. Como explicou Jonathan Edwards, Deus se comunica “conosco pela voz nas Escrituras” e também na criação e nos acontecimentos históricos. “A criação inteira prega a Deus.” Entretanto, é possível que os cristãos sejam surdos e cegos à mensagem da revelação geral, e parte do aprendizado de ter a mente de Cristo envolve orar por sensibilidade espiritual para “ouvir” a mensagem da criação.
Dessa forma, Pearcey nos leva à condição de observadores atentos à criação a à ação de Deus através da criação. Por isso é necessário parar e perceber que na tentativa de se espiritualizar algo que não deveria ser espiritualizado os cristão têm criado uma cultura que não possui fundamentos bíblicos e que, ao mesmo tempo, despreza aquilo que Deus tem feito através daqueles que não são cristãos.

Ora, se um cristão pode ser consultado por um médico não cristão e pode tomar um medicamento vendido na farmácia de um ateu e que foi produzido no laboratório de um cético, por que então não pode usufruir, de forma lícita e bíblica, de outros bens que a sociedade tem produzido, desde que estes bens não neguem nenhum princípio bíblico?

Pearcey (2006, p.39,51) ainda comenta:
            No dualismo secular/sagrado, o trabalho comum é denegrido, ao passo que o trabalho na igreja é exaltado como mais valioso [...]
            A mensagem subjacente era que as pessoas em profissões comuns podem contribuir com suas orações e apoio financeiro; nada mais.
            O mesmo dualismo secular/sagrado quase acabou com os talentos criativos dos fundadores de vídeos excentricamente engraçados, conhecidos nos Estados Unidos.
[...]
Em Gênesis, Deus dá o que chamaríamos de a primeira descrição de cargo: “Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a...” (Gn 1.28) A primeira frase – “Frutificai, e multiplicai-vos” – significa desenvolver o mundo social: formar famílias, igrejas, escolas, cidades, governos, leis.  Segunda frase - “enchei a terra, e sujeitai-a” – significa subordinar o mundo natural: fazer colheitas, construir pontes, projetar computadores, compor músicas. Esta passagem é chamada de o mandato cultural, porque nos fala que nosso propósito original era criar culturas, construir civilizações – nada mais.
Isto significa que nossa vocação ou trabalho profissional não é uma atividade de segunda classe, algo que fazemos para pôr comida na mesa. É a grande obra para a qual fomos criados. O modo como servimos ao Deus Criador pode ser demonstrado ao utilizarmos, com criatividade, os talentos e dons que Ele nos deu.
Com isso, podemos entender que a Graça Comm – também – é um meio de se preservar não só a cultura em geral e os valores éticos e morais que Deus estabeleceu, mas também pode ser um meio de preservar a própria identidade e mensagem do cristianismo bíblico.

No passado, quando a maioria da população era iletrada, uma das formas utilizadas na preservação e transmissão da mensagem cristã foram as obras de arte, que ensinavam de modo visual a mensagem do Evangelho. Contudo, o grande cuidado que se precisa ter diz respeito a idolatria, que conduz tais pessoas à adoração dessas obras.

Ainda, no desprezo pela manifestação cultural sadia e ética, muitos criaram uma casta sagrada no seio da igreja, passando a entender que aqueles que executam algum tipo de trabalho na igreja são mais dignos ou santos do que aqueles que trabalham fora da igreja. Tais obreiros passaram e ser vistos como pessoas mais santas, quando na verdade a santificação é algo que deve estar presente na vida do cristão em todas as áreas de sua vida e em todas as profissões legitimamente bíblicas[3].

O problema desse tipo de pensamento, além de descontextualizar a Bíblia e dicotomizar a vida cristã, é que – por exemplo – alguns professores cristãos de escolas seculares pensam que é suficiente apenas orar e deixar um texto bíblico para seus alunos, e depois voltam a ensinar as mesmas coisas que outros professores não cristãos ensinam e que estão nos currículos que fazem parte da agenda anti-cristã, como evolucionismo por exemplo.

A partir do momento que todos os cristãos genuínos entenderem a força que possuem, com suas profissões e áreas de influência, para promover o cristianismo bíblico e sadio, a cultura passará a representar com mais clareza e força a obra e o propósito de Deus para a Sua criação.

Por isso, não podemos excluir ou ignorar a cultura, mas utilizá-la com coerência e de forma que os seus aspectos negativos e distorcidos sejam corrigidos à luz da Bíblia. Dessa forma, em um contexto de perseguição e conflito contra a igreja, uma das maneiras de se preservar a identidade e o ensino bíblico é através da utilização dos meios culturais.

Os opositores do cristianismo na história entenderam isso claramente, pois na história do século XX a importância do fator cultural para preservação de uma ideologia fica bastante claro, especialmente quando tratamos da Rússia, China, Coréia do Norte e Cuba, por exemplo.

Por essa razão, algumas revoluções na história tiveram o objetivo de promover uma reformulação cultural que visava apagar todos os vestígios culturais do cristianismo. Nesses casos, os ditadores entenderam o poder da cultura para a formação de ideias e ideologias na população. De forma contrária, os cristãos têm demorado a entender a mesma coisa e, com isso, têm custado a aceitar a cultura como um fator favorável à propagação de seus ideais e valores, como ética, moralidade, integralidade da família e percepção da necessidade de glorificação de Deus através da conservação da criação. Portanto, a cultura pode e deve ser usada como uma forma de apresentação, preservação e divulgação da mensagem cristã.

Então, percebemos que, por exemplo, as obras de Marx e Engels influenciaram diretamente o avanço do ateísmo político na antiga União Soviética, especialmente sob o poder de Stalin que tornou a religião ilegal e promoveu campanhas nacionais que visavam extirpar de sua nação qualquer expressão religiosa, prática ou cultural, como afirmam Simon (1974), Pospielovsky (1998), Epshtein (1999), Bochorishvili (2005) e Richmond (2006). Ainda, seguindo o mesmo exemplo, Mao Tse-tung dá início a Reforma Cultural na China, em 1966, passando a utilizar a cultura como instrumento de doutrinação, como revela Wasserstrom (2010), semelhante ao que o nazismo de Adolf Hitler fez. Ali, a sua reforma cultural matou cerca de 10 milhões de pessoas e reprimiu com intensidade cada vez maior as expressões religiosas. Outros dois exemplos a serem citados, com as mesmas práticas, são a Coréia do Norte e Cuba.

Por isso, é importante atentar para os aspectos culturais de uma sociedade ou comunidade, pois se por um lado a cultura deve ser usada e cultivada, por outro lado é necessário discernimento para que se saiba o que é cultural e sadio e o que é cultural e nocivo. Não podemos sobrecair no erro de condenar a cultura devido aos seus aspectos negativos e distorções, bem como não podemos nos deixar enredar pelo discurso liberal que aceita tudo de uma cultura sem questionar e sem a adoção de um critério sólido de identificação. Mas, então, que critério deve ser utilizado para se identificar quais os aspectos positivos e bons e quais os aspectos negativos e nocivos de uma cultura?

Desde a Reforma Protestante a Igreja tem sido associada aos cinco Solas, que marcaram, identificaram e moldaram a Igreja de Cristo: 1) Sola Scriptura: Somente a Escritura; 2) Sola Gratia: Somente a Graça; 3) Sola Fide: Somente a Fé; 4) Solus Christus: Somente Cristo; 5) Soli Deo Gloria: Somente Glória a Deus. Todos os Solas tem como fundamentação a Escritura. A Bíblia Sagrada sempre foi e sempre será o parâmetro, medida padrão e critério que a Igreja deve usar em todos os aspectos de sua vida, especialmente diante de nossas limitações pessoais, geradas pela queda de Adão.

Pela queda de Adão o Sr humano é afetado em todas as áreas de sua vida. Fisicamente, passa a adoecer e morrer, sentir dor, Sr afligido em seu corpo corrompido. Metafisicamente, passa a ter as suas emoções afetadas por pensamentos desagradáveis, distúrbios e desequilíbrios. Mas o pior de tudo diz respeito a separação ocorrida entre o homem e Deus, a sua morte espiritual.

Espiritualmente, o homem passa a ser alienado de Deus, incapaz de – por si só – buscar, desejar ou até entender as coisas de Deus. Contudo, em termos físicos, o homem foi dotado de inteligência e capacitação de produzir coisas tão maravilhosas que nitidamente o tornam diferente de todo o restante da criação, mas isso não o aproxima de Deus em nada. Essa capacidade natural do ser humano lhe proporciona uma melhor condição de vida individual, em família e em sociedade, mas não espiritual. Charles Hodge (2001, p.678,680) afirmou que:
A incapacidade dos pecadores, segundo a prévia exposição da doutrina, não é mera ausência de inclinação para o bem [...] ela consiste na falta de capacidade de discernir corretamente as coisas espirituais, e na conseqüente ausência de todos os afetos corretos em direção a ela. [...] Esta incapacidade só é declarada em referência às “coisas do Espírito” [...] admite-se que desde a Queda o homem tem não só a liberdade de escolha ou o poder de autodeterminação, mas também é capaz de praticar atos morais, bons como atos maus. Pode ser amável e justo e cumprir seus deveres sociais de modo que mereça a aprovação de seus semelhantes. Isso não significa que o estado mental pelos quais tais atos são praticados, nem os motivos pelos quais são determinados, sejam tais que mereçam a aprovação de um Deus infinitamente santo; mas simplesmente que tais ações, quanto à sua forma, estão prescritas pela lei moral. Os teólogos, como já vimos, chamam a classe de ações que os homens apóstatas têm a capacidade de praticar de “justitia civilis”, ou “coisas externas”. E a classe a que se declara não ter ele a capacidade de praticar chamam de “coisas de Deus”, “coisas do Espírito”, “coisas que acompanham a salvação”.
Augustus Hopkins Strong (2008, p.1137,1138) concorda com Hodge, ao fazer a mesma citação.

Então, os aspectos culturais são permeados de boas e más características, e na tentativa de se identificar e selecionar as características positivas e proveitosas devemos proceder com o estudo da Escritura como padrão e critério. Dessa forma, é importante que aqueles que se dizem cristãos sejam ensinados e treinados a identificar os bons aspectos culturais. E não só isso, é necessário que haja incentivo para que a cultura seja corretamente utilizada e desfrutada como forma de glorificar a Deus e como meio de anunciar as Suas obras e derramamento de Graça sobre a criação.

Por isso, não podemos nos opor a manifestação da Graça Comum na humanidade, seja através das artes (música, poesia, literatura) ou da ciência. O que precisamos é saber ensinar critérios bíblicos de seleção e princípios bíblicos para a correta utilização da cultura, de forma equilibrada e edificante. George Ladd (2009, p.695) explica que o apóstolo Paulo utilizou essas ferramentas culturais, a exemplo da filosofia ou de “conceitos helenísticos”, mas sabendo moldar tais informações à luz da Sagrada Escritura:
A partir desses estudos das possíveis fontes do pensamento ético de Paulo, várias conclusões emergem. Está claro que Paulo não é um legalista. Ele não tenta substituir um novo código de ética cristão pela Lei do Antigo Testamento. Todavia, tem fortes convicções sobre a conduta cristã correta. As fontes de seu pensamento ético são complexas. A infra-estrutura de seu pensamento é o Antigo Testamento. Ele não hesita em fazer uso de conceitos helenísticos, mas estes são sempre interpretados nos termos da nova vida em Cristo. Paulo utiliza todos os ideais éticos que lhe estavam disponíveis, a fim de expressar suas convicções a respeito de como o cristão deveria viver.
Nesse sentido, surge a polêmica sobre músicas não cristãs.

Para rejeitar a possibilidade de se ouvir uma música secular, porém de conteúdo sadio, alguns podem argumentar que o cristão deve andar na contramão do mundo e que não deveria compactuar com práticas, hábitos e costumes de pessoas que não tem o conhecimento de Deus. Ainda, que a vida do cristão deve estar voltada para louvar e engrandecer ao Senhor.

Concordamos com o argumento. Mas, quem disse que uma música secular, obra de arte ou qualquer outra produção artística, que não envolva idolatria ou a quebra de um princípio bíblico, não está louvando a Deus?

Ora, se foi o próprio Deus quem capacitou o homem a fazer tal coisa (Tg 1:17) e se a própria Escritura declara que “os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19:1), por que não poderíamos utilizar a cultura como meio de anunciar a criação e Graça de Deus? Será que não foi para isso que Ele capacitou o homem?

Talvez pela falta dessa consciência é que exista, hoje, um número tão reduzido de artistas verdadeiramente cristãos. O fato é que a Igreja tem não só se omitido nesse aspecto, mas até mesmo discriminado os que pensam e agem dessa forma. A verdade é que a Igreja tem perdido um terreno fértil e não tem se dado conta disso.

Contudo, a própria Bíblia menciona, e estimula, em Atos 17:28, a leitura de poetas não cristãos. Ainda, o que dizer do livro de Cantares de Salomão, quando os “cantares” (músicas) são direcionadas à mulher, e de forma, muitas vezes, romântica, para não utilizar outra palavra?

Por outro lado, é importante repetir que, sendo o homem pecador por natureza, é preciso manejar bem a Palavra da Verdade para saber selecionar o aspecto correto e dizer não ao distorcido. Especialmente pela tendência mais recente de relativização e desconstrucionismo a que o mundo vem sendo submetido. Então, pela falta de orientação bíblica adequada e contextualizada muitos têm perdido o equilíbrio ao longo dos anos, passando a dizer sim àquilo que deveria receber um não, o, em caso contrário, dizendo um não àquilo para o que deveria dizer sim. Nessa mesma direção Nancy Pearcey (2006, p.399) faz a seguinte afirmação:
Em um mundo de relativismo moral, onde tudo é reduzido à escolha pessoal, dizer “não” já é um ensinamento muito difícil. Se não parece difícil, então sem perceber estamos nos conformando com o mundo. Se não estamos dizendo “não” de modo a nos colocarmos de joelhos para buscar o poder capacitante de Deus, então não estamos nos levantando contra o sistema pecador do mundo como devemos.
Portanto, não podemos cair nas armadilhas do relativismo, secularismo e liberalismo e abraçar todas as práticas e conceitos disponíveis na sociedade. Precisamos de direção bíblica, mediante a orientação do Espírito e uma vida piedosa que nos ajudará a andar em passos firmes e sadios. Por outro lado, também não podemos, em nome de uma fé cega, legalista, moralista e engessada proibir a utilização de todas as coisas existentes nesse mundo na tentativa de viver uma vida ascética, enclausurada e hermética como se não estivéssemos nesse planeta e como se não pudéssemos utilizar de forma ordeira, equilibrada e saudável aquilo que o próprio Deus capacitou o homem a fazer.



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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOCHORISHVILI, Tinatin; SWEET, William; AHERN, Daniel. Politics, ethics and challenges to democracy in 'new independent states'. Washington: Council for Research in Values and Philosophy, 2005.

CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia – Volume 2. São Paulo: Hagnos, 2006.

ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1992.

EPSHTEIN, Mikhail; GENIS, Alexander; VLADIV-GLOVER, Slobodanka. Russian postmodernism: new perspectives on post-Soviet culture. New York: Berghahn Books, 1999.

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001.

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2009.

PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.

POSPIELOVSKY, Dimitry. The Orthodox Church in the History of Russia. New York:  St Vladimir's Seminary Press, 1998.

RICHMOND, Simon. Russia & Belarus. Footscray: Lonely Planet, 2006.

SIMON, Gerhard. Church, State, and Opposition in the U.S.S.R. California: University of California Press, 1974.

STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática – Volume 2São Paulo: Hagnos, 2008.

WASSERSTROM, Jeffrey N. China in the 21st Century. Oxford: Oxford University Press, 2010.









[1] Anti-semita é alguém que possui preconceito ou hostilidade contra os judeus, seja na nacionalidade, cultura ou religião.
[2] Eugenia, após o nazismo, passou a ser uma ideologia que utiliza a pesquisa científica para produzir uma suposta pureza racial, que culminou no Holocausto.
[3] A expressão “profissões legitimamente bíblicas” é utilizada porque atualmente alguns estilos de vida reprovados pela Escritura Sagrada têm sido reconhecidos como profissão, a exemplo da prostituição.